No romance do autor português Valter Hugo Mãe lançado em 2022, "As Doenças do Brasil", o fogo é visto pelos indígenas da aldeia fictícia amazônica Abaeté como espíritos do mal da floresta, já que lambe toda a vida e provoca a morte.
Fora da ficção, os incêndios na Amazônia trazem também problemas graves de saúde às populações de territórios indígenas e de outras cidades que podem persistir por anos.
Um estudo conseguiu mensurar pela primeira vez os danos associados às queimadas em terras indígenas da Amazônia Legal e observou um impacto estimado de cerca de 15 milhões de casos de infecções respiratórias e doenças cardiovasculares por ano com um custo estimado de US$ 2 bilhões (cerca de R$ 10,1 bi).
Considerando que as partículas de poluentes dispersas com os incêndios podem se espalhar para até 500 km do local do foco inicial, os danos à saúde são sentidos em diversos outros estados e países do continente sul-americano.
Por outro lado, manter a floresta de pé auxilia na absorção desses poluentes e ajuda a prevenir casos de problemas respiratórios e gastos aos serviços de saúde.
O estudo, publicado nesta quinta (6) na revista científica Communications Earth & Environment, do grupo Nature, foi conduzido por pesquisadores de Brasil, México e Estados Unidos, com apoio financeiro da Fundação Ford.
Antes da publicação, foi organizada uma conferência para jornalistas na última quarta (5) com a presença de Carlos Nobre, cientista do clima, Paula Prist, pesquisadora da Ecohealth Alliance (EUA) e autora principal do estudo, Patrícia Pinho, diretora científica do Ipam (Instituto Brasileiro de Pesquisa Ambiental da Amazônia), Marcia Macedo, diretora do programa de água e pesquisadora do Centro de Pesquisas Climáticas Woodwell, Dinamam Tuxã, coordenador-executivo da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) e Maypatxi Apurinã, gerente de monitoramento territorial da Coiab (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira).
Para avaliar os efeitos na saúde do fogo nos territórios indígenas da Amazônia, os cientistas primeiro usaram dados de satélite de dois sistemas da Nasa de incêndios e a correlação destes com a emissão de poluentes na atmosfera de 2010 a 2019.
Esses poluentes são medidos pela chamada concentração de material particulado de dimensão 2,5 (PM2,5). A OMS (Organização Mundial da Saúde) recomenda um limite máximo de 5 µg/m3 (microgramas por metro cúbico) de PM2,5.
Em seguida, observaram a incidência das infecções respiratórias do mesmo período provocadas pela poluição do ar ou por inalação dessas substâncias, utilizando os dados do DataSUS, do Ministério da Saúde. Os cientistas consideraram as taxas de infecções nos 772 municípios da região, não só naqueles adjacentes às terras indígenas.
Segundo Prist, a análise das infecções respiratórias no estudo incluiu tanto os pacientes afetados pela exposição ao PM2,5 aguda (no local do incêndio), cujos efeitos levam ao atendimento emergencial em serviços de saúde, quanto aqueles que, devido a uma exposição anual às partículas, tiveram adoecimento crônico.
Cruzando os dados, os pesquisadores viram uma maior incidência de infecções por doenças respiratórias nos anos de maior ocorrência de queimadas (2011, 2013 e 2010). A incidência média anual no período foi de 587 casos por 100 mil habitantes.
Nos territórios indígenas, a taxa registrada foi de 227 casos por 100 mil habitantes -cerca de 143 mil casos por ano. A incidência de novas infecções respiratórias apresentou um crescimento de 165% nos territórios indígenas de 2010 a 2019, sendo o último o pico de maior incidência (também de maior ocorrência de queimadas).
Alguns locais, como nos territórios indígenas Kayabi (Mato Grosso), Panará (Pará) e Sete de Setembro (na divisa de Rondônia e Mato Grosso) representaram as maiores incidências de casos respiratórios.
Para a pesquisadora, apesar de alguns picos representados por aumento da ocorrência de queimadas em 2013 e 2019, a análise considerou as internações ano a ano justamente para eliminar esses possíveis pontos "fora da curva".
"Toda vez que temos um incêndio, ele tem o efeito para a saúde pública e, embora em anos com mais queimadas o efeito seja maior, na nossa análise vimos uma correlação clara entre incidência de doença respiratória e emissão de poluentes", afirma Paula Prist.
A pesquisa estimou que mais de 1,7 tonelada por ano de poluentes é liberada só com os incêndios na Amazônia, sem contar as queimadas em outros biomas brasileiros.
Por outro lado, a floresta amazônica tem o potencial estimado de absorver 26 mil toneladas de poluentes na atmosfera a cada ano, sendo 27% desta capacidade somente nos territórios indígenas, que representam 22% de toda a extensão da Amazônia Legal.
"A preservação da floresta e dos territórios indígenas e tradicionais tem capacidade não só de mitigação climática, mas também de trazer benefícios inequívocos para a saúde", explica Prist, destacando que nos últimos quatro anos de governo Bolsonaro houve um desmantelamento das políticas de proteção às terras indígenas.
O estudo destaca ainda que houve um aumento de perda florestal por queimadas no período, uma situação que vem se agravando -os anos de 2020 a 2022, não inclusos no estudo, foram de recordes de desmatamento na região.
"O número de incêndios vem crescendo nos últimos anos, então é de se esperar que os efeitos para a saúde também sejam aumentados", afirma a pesquisadora.
Para Dinaman Tuxã, da Apib, o estudo concretiza aquilo que os povos indígenas alertam há tempos. "Já vimos alertando e contribuindo para a comunidade científica e global a importância dos territórios indígenas para o combate ao aquecimento global e às mudanças climáticas. Quando alertamos para a demarcação [de terras], isso reflete muito mais do que apenas na população indígena que vive ali", diz.
Tuxã espera que o governo Lula (PT) cumpra a promessa de realizar a demarcação de terras indígenas até o prazo de cem dias de governo, que será completado na próxima segunda (10).
Em nota, o Ministério dos Povos Indígenas informou que concluiu a instrução processual de 12 terras indígenas consideradas como prontas para finalização do procedimento demarcatório, de acordo com a identificação feita pela equipe de transição de governo ainda em 2022, e que espera retomar os processos de demarcação durante o mês de abril.
De acordo com estudo do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia), a demarcação dos 13 territórios indígenas prometidos, dos quais cinco estão na Amazônia, totalizariam em uma redução de mais de 470 bilhões de gases de efeito estufa emitidos na atmosfera, além da possibilidade de estocar dezenas de bilhões de toneladas de carbono.
"É imprescindível preservar os territórios não só pela sua biodiversidade e complexidade cultural, mas para assegurar o futuro tão almejado de um desenvolvimento sustentável e de resiliência climática", afirma Patrícia Pinho, do Ipam.Folhapress/Foto:Shutterstock
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