Após os anos de tensão entre Brasil e França durante o governo Jair Bolsonaro (PL), a chanceler francesa, Catherine Colonna, chegou nesta terça (7) ao Brasil para restabelecer laços entre os países.
"Este é o primeiro passo para reacender nossa parceria estratégica", disse por email Colonna, que prepara a visita do presidente Emmanuel Macron a Brasília, prevista para as próximas semanas.
A ministra celebrou os sinais dados pelo atual governo em relação à política ambiental e afirmou que a França apoia o acesso do Brasil à OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento) -o país europeu tinha ressalvas devido à alta no desmatamento e no garimpo ilegal durante o governo Bolsonaro.
Mas Colonna, que será recebida pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nesta quarta-feira (8) e se reunirá com o chanceler Mauro Vieira e a ministra Marina Silva (Meio Ambiente), sinalizou que a França diverge do Brasil a respeito da Guerra da Ucrânia. Lula negou pedido do premiê alemão, Olaf Scholz, para envio de munições à Ucrânia e reforçou a visão de que o Brasil não tomará partido, ainda que condene a agressão russa.
PERGUNTA - As relações entre França e Brasil passaram por momentos de tensão. Bolsonaro cancelou uma reunião com o então chanceler francês, Jean-Yves Le Drian, e foi fazer um vídeo cortando o cabelo. A França criticou a política ambiental do Brasil e o aumento dos incêndios e do desmatamento na Amazônia. O país disse que não apoiaria a entrada do Brasil na OCDE se não houvesse progresso no combate ao desmatamento. O que a senhora espera das relações entre França e Brasil no governo Lula?
CATHERINE COLONNA - França e Brasil têm uma história de laços profundos que remonta a séculos. A França compartilha sua maior fronteira com o Brasil, 730 km ao longo da Guiana Francesa. Por 15 anos, estivemos unidos por uma ambiciosa parceria estratégica, de transferência de alta tecnologia militar a cooperação linguística. Esses laços se mantiveram fortes, mesmo nos anos recentes. O Brasil é o nosso principal parceiro econômico na região, e as empresas francesas são as maiores empregadoras estrangeiras no Brasil.
Agora é o momento de dar um passo à frente nessa cooperação, em um novo contexto. Nosso presidente expressou de forma clara seu apoio ao governo democraticamente eleito do Brasil. Os presidentes Macron e Lula já estiveram em contato duas vezes desde a eleição, em outubro. Minha visita ao Brasil é o primeiro passo para reacender nossa parceria estratégica. Os dois presidentes também devem se reunir em breve para avançar nos projetos de cooperação. Compartilhamos desafios importantes e grandes ambições para um multilateralismo efetivo, segurança internacional e proteção ambiental. Esperamos fortalecer ainda mais nossos laços econômicos, também mirando o acesso do Brasil à OCDE, o qual apoiamos. O Brasil é um dos principais atores globais. O retorno do país ao cenário global é fortemente esperado.
O governo Lula anunciou que está trabalhando numa regulação para plataformas de internet e que o Digital Services Act (DSA, a Lei dos Serviços Digitais europeia) é uma das inspirações. A legislação pretende responsabilizar as plataformas pela disseminação de conteúdo que viole a Lei do Estado Democrático e incitem insurreição e golpe. Mas parcelas da sociedade civil e as empresas enxergam riscos para a liberdade de expressão. Como a França enxerga a imunidade das plataformas?
C. C. - Enfrentamos desafios semelhantes na França e na Europa. Nossa abordagem é muito clara: o que não é permitido offline não deve ser permitido online. A Guerra da Ucrânia e a pandemia deram origem a campanhas de desinformação agressivas, em parte possibilitadas pela falta de regulamentação das redes sociais. Essa é uma ameaça direta e séria contra a democracia. A França e a União Europeia defendem uma visão de internet democrática e regulada, com respeito aos direitos humanos e aos valores fundamentais. O DSA foi um marco importante no esforço para impedir que a internet continue a ser uma selva sem lei.
Macron prometeu "firme apoio" à Ucrânia "até a vitória". O que o Brasil pode fazer para ajudar a resolver o conflito na Ucrânia?
C. C. - Deixe-me ser muito clara: existe um país que foi atacado, a Ucrânia, e um agressor, a Rússia. Ao promover uma guerra ilegal contra um país soberano e independente, a Rússia, um membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, violou deliberadamente os princípios da Carta das Nações Unidas. Ao mirar deliberadamente a infraestrutura civil, a Rússia está cometendo crimes de guerra. É nossa responsabilidade garantir que esses crimes não fiquem impunes.
O Brasil sempre foi um forte defensor do direito internacional. O país já expressou na ONU seu repúdio à violação flagrante da Rússia à integridade de um país soberano. Estamos lado a lado nessa questão. A amplitude do apoio à Ucrânia está crescendo, como demonstrado pelos países de todos os continentes que participaram da conferência em Paris em 13 de dezembro e se comprometeram a enviar mais de EUR 1 bilhão em ajuda à Ucrânia. [A guerra] diz respeito a todos nós. A crise alimentar e as ameaças à segurança energética estão nos atingindo fortemente. Nesse sentido, França e Brasil compartilham a preocupação com o impacto da guerra sobre populações mais vulneráveis. A França promoveu iniciativas para diminuir os impactos da guerra, especialmente em segurança alimentar. Acompanhei recentemente a entrega de 50 mil toneladas de trigo para Etiópia e Somália, ajuda financiada pela França e pela Alemanha.
Lula afirmou que quer concluir o acordo UE-Mercosul em seis meses. É possível?
C. C. - Nossa posição é clara: alguns Estados-membros, incluindo a França, pediram garantias claras em relação ao impacto do acordo sobre o ambiente. Essas demandas estão alinhadas à abordagem defendida pela UE e pela França em relação a comércio sustentável e desenvolvimento, respeitando nossos compromissos sociais e ambientais internacionais. Queremos que nossos parceiros sigam as mesmas regras que seguimos. Os acordos comerciais do século 21 precisam refletir os desafios de hoje. Saudamos as ambições do governo Lula de cumprir as normas internacionais em relação a desmatamento, as metas do Acordo de Paris e as regras de segurança dos alimentos. Em diálogo com o Mercosul e com o Brasil, a UE vai analisar de que forma o acordo UE-Mercosul fornece as garantias necessárias. Isso vai beneficiar a todos.
A Alemanha anunciou um pacote de R$ 1,1 bilhão para desenvolvimento sustentável e combate ao desmatamento no Brasil. De que maneira a França pode cooperar na preservação da Amazônia?
C. C. - A proteção da floresta amazônica é de enorme importância para a França e para o Brasil, com pleno respeito às nossas soberanias. Precisamos identificar novos modelos para preservar a floresta e garantir desenvolvimento sustentável das comunidades locais, além de recursos para combater o garimpo ilegal, o desmatamento e o crime organizado. Durante minha visita, espero conversar com a ministra Marina Silva para identificar oportunidades e fazer nossas agendas convergirem. A Cúpula Amazônica que será realizada por Brasil e Colômbia em alguns meses será essencial para definir estratégias.
A França, que também é um país amazônico, está pronta para cooperar com seus parceiros nesse tema. O atual governo brasileiro tem mostrado fortes sinais de seu comprometimento para reverter a tendência atual de desmatamento ilegal na Amazônia e em outros biomas. Estamos convencidos de que o Brasil possui todos os instrumentos necessários para fazer uma contribuição positiva a essa agenda essencial e se tornar uma potência verde global. Apoiamos a candidatura do Brasil para sediar a COP30 em 2025.
O Brasil enfrentou uma tentativa de golpe em 8 de janeiro. Como os países devem lidar com a ascensão do extremismo de direita?
C. C. - Após os ataques em Brasília, a França reafirmou seu apoio incondicional ao Brasil e a Lula diante de qualquer tentativa de ameaçar processos democráticos. Macron também enfatizou que nosso país está determinado a defender os valores universais da democracia e a desenvolver mais instrumentos democráticos para lutar contra a desinformação. Hoje enfrentamos o que Macron chama de "guerras híbridas", que dão suporte a "universalismos concorrentes". Estamos prontos para trabalhar com as autoridades brasileiras para estabelecer cooperação e diálogo regular sobre melhores práticas para fortalecer a democracia e proteger a liberdade de expressão, de imprensa e informações confiáveis.
Não podemos ser ingênuos em relação ao modelo alternativo que algumas potências, como a Rússia, tentam promover. Essa agenda tem como objetivo minar a democracia e desestabilizar países. Acreditamos firmemente que a universalidade estabelecida na Carta da ONU e em declarações de direitos humanos é a única que garante a soberania e os direitos fundamentais. Não há dúvida de que é necessário aperfeiçoar o sistema multilateral para haver mais eficiência e legitimidade. A França há muito defende que o Brasil tenha um assento no Conselho de Segurança da ONU.
Raio-X | Catherine Colonna, 67
Ministra das Relações Exteriores da França, formou-se no Instituto de Estudos Políticos de Paris e na Escola Nacional de Administração. Foi porta-voz da Presidência da República de 1995 a 2004, embaixadora na Itália de 2014 a 2017, representante permanente junto à OCDE de 2017 a 2019 e embaixadora no Reino Unido entre 2019 e 2022.Folhapress/Foto:Getty
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