Ao menos 72 mil pessoas internadas morreram por Covid fora de UTI

Em julho do ano passado, o técnico em telecomunicação Everton Silva, 31, levou seu pai, José Erasmo da Silva, 54, para ser atendido numa UPA (Unidade de Pronto Atendimento) no Distrito Federal devido à Covid-19. 

Com a falta de ar e a piora do quadro, José Erasmo morreu logo após a internação, antes de conseguir transferência para um leito de UTI (Unidade de Terapia Intensiva).

"Ele não aguentou esperar."

Assim como Silva, desde o início da pandemia, há um ano, ao menos 72.264 pessoas morreram por Covid sem acesso a um leito de UTI mesmo tendo sido internadas –mais de 1/4 dos quase 280 mil mortos deixados pela doença no país até agora.

O número, reflexo do colapso do sistema hospitalar em diversas regiões do país, representa um óbito para cada três pessoas hospitalizadas. É presumível que parte deles pudesse ter sido evitada com o tratamento intensivo.
Os dados são do Sivep-Gripe (Sistema de Informação de Vigilância Epidemiológica da Gripe) e fazem parte de um levantamento da Fiocruz realizado a pedido da Folha.

Como em 22.712 (10%) dos casos hospitalizados não há informação de que pessoa teve acesso a UTI, o número de sem-leito pode ser ainda maior. Em 124.064 (57%) casos, a morte ocorreu em UTI.

Especialistas afirmam que as mortes fora de UTI acontecem principalmente por falta de acesso da população, seja falta de vaga ou dificuldade de chegar até um leito.

Diego Xavier, pesquisador do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde da Fiocruz e responsável pelo levantamento, diz que impacta na estatística a condição em que o paciente chega ao hospital.

O volume de óbitos fora da UTI nos municípios do interior é mais expressivo do que nas regiões metropolitanas. Um dos motivos seria as longas distâncias a percorrer em busca de atendimento."Dependendo do quadro, pode evoluir rapidamente para óbito sem tempo hábil para entrada em leito especializado."

Os estados com maior percentual de mortes fora de leitos de UTI são Sergipe, Roraima e Amazonas. Os governos estaduais dos dois últimos, assim como Diego Xavier, também atribuem essas mortes à gravidade com que os pacientes chegam às unidades.

Fátima Marinho, médica epidemiologista e especialista sênior da Vital Strategies, acrescenta que o número total de mortos fora de UTIs é ainda maior porque muitos óbitos ocorrem sem que a pessoa tenha sido hospitalizada.

"Para a especialista, muitas dessas mortes poderiam ser evitadas caso o sistema de saúde estivesse preparado para oferecer assistência adequada e no tempo certo.

"Sabemos que o aumento da mortalidade está relacionado à severidade da doença mas também com falta de assistência. Casos graves, bem assistidos, podem ser curados."

Xavier afirma que os dados refletem uma parcela da segunda onda. Eles devem disparar nas próximas semanas pela falta de vagas de UTI com o sistema em colapso.

No auge da pandemia contra o novo coronavírus, 19 estados e o Distrito Federal com a taxa de ocupação de 80% ou mais de leitos de UTI. A situação é ainda mais grave nas capitais, com 24 delas já nesse percentual de lotação.

A falta de vagas no sistema público de saúde tem provocado filas a espera por UTI. Levantamento da Folha junto às secretarias de saúde mostra que há ao menos 1.538 pessoas nessa condição em 13 unidades da federação.

Santa Catarina (419), Goiás (291) e Distrito Federal (224) lideravam a lista até o dia 11.

Sem leitos em seus estados, alguns governadores têm procurado outras unidades da federação. Amazonas, Rondônia e Santa Catarina são alguns que transportaram pacientes para serem atendidos em outros estados, totalizando, os três, 620 transferências.

Em Santa Catarina, 419 pessoas aguardavam leitos de UTI até quinta (11). Foram transferidos cinco pacientes ao Espírito Santo, mas o deslocamento foi suspenso com o aumento de pacientes em Vitória.

"Após este período, a situação será monitorada a cada dia pelas equipes da Secretaria de Saúde de Santa Catarina, para verificar como está a disponibilidade de leitos de UTI do Espírito Santo para auxiliar o estado catarinense", disse a secretaria estadual de Saúde em nota.

No país, nem a judicialização tem resultado na garantia de vagas por leitos UTI. Vários estados têm encontrado dificuldade para cumprir prazos determinados pela Justiça.

"Às vezes vêm a decisão judicial para cumprir, mas como que vai fazer se não tem leito? Nós temos que perguntar ao Poder Judiciário quem vamos tirar para colocar esse paciente, mas esse comando nunca vem", afirmou Gustavo Rocha, secretário da Casa Civil do Distrito Federal.

"A situação está no limite, decisões judiciais têm que ser cumpridas, mas, se não há disponibilidade de leitos, não tem como cumprir."

Fernando Bellissimo Rodrigues, médico infectologista e professor associado da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, disse que o país não tem capacidade de abrir leitos UTI em larga escala porque está faltando pessoas especializadas para trabalhar na alta complexidade.

"Abrir leitos não exige somente o espaço físico e o respirador. Leva anos para se formar um enfermeiro especializado e um médico intensivista. Esses profissionais se esgotaram no mercado, não tem como comprar, importar."

Miguel Roberto Jorge, ex-presidente da Associação Médica Mundial e professor da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), defende adotar medidas eficientes de isolamento social, para reduzir o impacto do número de casos e de mortes. Para ele, só a vacina não resolverá o problema a curto prazo, e o país precisa, neste momento, evitar que os casos aumentem.

"A vacina demora para dar resultado, o que nós estamos vendo é o sistema de saúde colapsado. Temos que vacinar pensando num futuro próximo, mas o que pode derrubar esses números é tornar mais rigidamente as medidas preventivas, como o distanciamento social e máscaras."

Os estados de Roraima e Amazonas afirmaram que a quantidade de mortes de pessoas hospitalizadas fora de leitos de UTI se deve sobretudo à gravidade com que os casos chegam às unidades.

A secretaria de Saúde de Roraima disse que no plano de contingência estadual para o enfrentamento da Covid os leitos de UTI foram ampliados de 16 para 115. Em paralelo, foram contratados mais profissionais de saúde.

A secretaria de Saúde do Amazonas declarou que tem aprimorado protocolos assistenciais e ampliou os leitos de UTI de 130 para 426. O Ministério da Saúde e Sergipe não responderam à reportagem. Com informações da Folhapress/Foto:Getty Images- Imagem Ilustrativa

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