Capitalismo selvagem à brasileira

Empresas que se instalaram em Moçambique através de projetos exportados pelo Brasil avançam sobre as terras dos camponeses enquanto o país, em crise, se afasta dos programas de cooperação na África

A província de Niassa compartilha com o Malavi as águas azuis do terceiro maior lago da África e um espaço imaginário com o Brasil, entre os paralelos 13o e 17o Sul. Nessa latitude, a savana se torna cerrado do outro lado do Atlântico, onde a terra vermelha, o calor tropical e a vegetação baixa sombreada por árvores aproximam ainda mais Brasil e Moçambique, irmanados na língua e no passado de escravidão que marcou sua gente.

Vista de perto, porém, a savana, pontilhada de casinhas de adobe e teto de palha, não guarda mais nenhuma semelhança com o cerrado desfigurado pela soja, a principal commodity brasileira, responsável por 12,7% das exportações. Lichinga, a capital do Niassa, tem a mesma latitude de Lucas do Rio Verde, no Mato Grosso, estado onde a soja se estende por mais de 8 milhões de hectares. Aqui, as machambas (roças) são pequenas e produzem milho, feijões e amendoim, algumas culturas de rendimento como gergelim, girassol e chá.
Mulheres em Monapo

Da janela do carro, vemos as crianças pastoreando os cabritinhos na entrada das aldeias e as mulheres, enroladas em capulanas coloridas, com potes de água na cabeça. Os homens se aproximam, oferecendo bacias de cenouras, milho assado, feixes de lenha, sacos de carvão. Mais de 76% dos habitantes da província vivem do trabalho nas machambas, vendendo o excedente – e os produtos mais valiosos, como os animais e hortaliças – nas estradas e nos mercadinhos locais.

Trata-se de uma população rural proporcionalmente elevada até em relação ao país, em que 68% dos 27 milhões de habitantes vivem da terra. São as machambas, cultivadas de sol a sol com a enxada de cabo curto, que garantem a alimentação de mais de 90% das famílias moçambicanas, baseada na chima (um angu de milho-branco) acompanhada do caril, feito de amendoim, feijões e hortaliças.

Com 142 mil habitantes, Lichinga é o centro urbano da área mais fértil do corredor de Nacala, um cinturão agrícola de 14 milhões de hectares que vai do lago Niassa, no noroeste do país, ao porto de Nacala, no oceano Índico, onde 4,5 milhões de camponeses vivem nas províncias de Niassa, norte da Zambézia, Nampula e um pequeno trecho de Cabo Delgado.

A coincidência de latitude entre o corredor de Nacala e a zona produtora de soja brasileira é a pedra fundamental do Programa de Cooperação Tripartida para o Desenvolvimento Agrícola da Savana Tropical (ProSavana). Assinado em 2009 pela Agência Brasileira de Cooperação (ABC), Japan International Cooperation Agency (Jica) e Ministério da Agricultura e Segurança Alimentar de Moçambique (Masa), o ProSavana nasceu para desenvolver a agricultura do país, implantando a monocultura de soja e de outras commodities.

O projeto tem DNA brasileiro. O Plano Diretor foi elaborado pela GV Agro, um think tank do agronegócio da Fundação Getulio Vargas, presidido por Roberto Rodrigues, ex-ministro da Agricultura do governo Lula e cotado para o mesmo cargo em um eventual governo Temer. A GV Agro criou também um fundo de investidores privados, o Fundo Nacala, para um investimento conjunto de empresários brasileiros de produção de grãos. 
 
A Embrapa é a coordenadora técnica do projeto, inspirado no Programa de Cooperação Nipo-Brasileira (Prodecer), que desmatou o cerrado do Centro-Oeste brasileiro e expulsou comunidades para implantar a monocultura da soja a partir dos anos 1980. Financiado pela Jica, o programa doou equipamentos, ofereceu consultores e enviou pesquisadores brasileiros da Embrapa ao Japão para aprimorar a produção de soja no cerrado.

É essa tecnologia, baseada na cultura de sementes comerciais, com o uso de adubos e defensivos químicos, que está sendo exportada para a savana africana. Como diz Vicente Adriano, um dos diretores da União Nacional de Camponeses (Unac), “o ProSavana vai exportar para Moçambique os poucos problemas que ainda não temos, como a falta de terras para os camponeses e o uso de agrotóxicos nas machambas”.
 
“Os camponeses querem água encanada nas casas, microssistemas de irrigação e extensão rural para melhorar a produtividade das machambas”, diz Adriano, rebatendo as acusações de que os inimigos do programa estão contra o progresso. “Mas como levar a sério um governo que investe apenas 5% do orçamento na agricultura enquanto 81% da população ativa trabalha na terra?”, pergunta. Para ler a matéria completa   Clique Aqui!Por Marina Amaral Foto:Alexandre Campbell/Agência Pública

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